
Chespirito: Sem Querer Querendo: Chespirito entre a lenda e o homem
A série reacende nossa saudade de Chaves e Chapolin e, às vezes, suaviza as sombras do mito
“Não contavam com minha astúcia.”
“Calma, calma, não criemos pânico.”
“Sigam-me os bons.”
Se essas frases despertam uma memória afetiva instantânea, você sabe exatamente do que estou falando: Chaves e Chapolin, dois programas mexicanos que atravessaram gerações e viraram língua materna da nossa nostalgia. A série Chespirito: Sem Querer Querendo, da HBO Max, propõe olhar para trás do figurino e do bordão para contar a história do homem por trás dos ícones: Roberto Gómez Bolaños, o Chespirito.
Chespirito era — e segue sendo — um gênio do humor. Seu repertório de esquetes e personagens conversa com crianças e adultos porque nasce do cotidiano, da fragilidade humana, da piada que acolhe. Chaves e Chapolin surgiram no comecinho dos anos 70 e continuam atuais, especialmente na América Latina (e, claro, no Brasil), porque não dependem de ser “da moda”; dependem de empatia.

A série entende esse coração pulsante e decide tratá-lo como fábula: a narrativa abraça a fantasia, investe no encantamento. Há uma doçura agridoce que nos faz rir com o coração apertado, como se estivéssemos reabrindo um álbum de família.
Mas… será que tudo foi mesmo assim? Toda biografia escolhe um enquadramento… e esta escolhe o seu. Chespirito: Sem Querer Querendo escala Bolaños no papel do gênio sonhador, carismático e amigo, enquanto Margarita Ruiz e Marcos Barragán (figuras ficcionais, mas claramente referenciando pessoas reais do círculo de Chespirito) ocupam o lado sombrio da história. A vida real, como sabemos, foi mais complexa do que o preto-e-branco do roteiro. Há disputas de bastidores, versões conflitantes, mágoas que a série apenas passa superficialmente. E aí mora meu conflito como espectadora: eu entendo a escolha de contar uma história bonita (afinal, estamos falando de um contador de história); mas também sinto falta de uma lupa mais honesta sobre as relações, os rompimentos, as negociações de poder que fizeram o show acontecer e também terminar.

Ainda assim, é impossível negar o magnetismo do protagonista. Pablo Cruz Guerrero entrega um Chespirito encantador, não só pela caracterização precisa, mas por um brilho no olhar que comunica “eu acredito nas minhas histórias e quero que você acredite junto comigo”. Esse traço é chave: quando o ator nos olha: ele devolve a criança que fomos. E, por alguns minutos, a série quase nos convence a esquecer as falhas e ficar só com o que havia de mais luminoso: a generosidade do riso.
O melhor de Chespirito: Sem Querer Querendo é quando ela assume essa vocação de memória afetiva sem vergonha de parecer “maior que a vida”. Porque Chespirito, de certa forma, sempre foi isso: um artesão de afetos que transformou pobreza cenográfica em riqueza emocional; que fez da vila um mundo inteiro; que provou que heroísmo também mora no ridículo, na covardia que vira coragem um segundo depois — “não contavam com minha astúcia!”, lembram? A série funciona como uma carta de amor que diz “obrigada” com a simplicidade que os personagens sempre defenderam.
O pior da série aparece quando a fábula vira escapismo seletivo. Ao optar por vilões absolutos e por um protagonista quase santo. A narrativa dilui as ambiguidades que fariam essa história ainda mais poderosa. Chespirito não precisa ser canonizado para continuar a ser amado; ele só precisa ser humano. E a trupe ao redor dele — com seus atritos, ciúmes e carinhos — também merecia esse tratamento de três dimensões. A gente aguenta a complexidade. Nós crescemos.
No meu balanço, Chespirito: Sem Querer Querendo é um abraço quente, mas um abraço que às vezes afrouxa quando o assunto pede firmeza. Como produto de memória, cumpre seu papel com folga: emociona, diverte e convida a revisitar episódios, bordões, trilhas sonoras. Como retrato de um fenômeno cultural e de seu criador, deixa lacunas e está tudo bem reconhecer isso. O legado de Chespirito não é feito de perfeição: é feito de afetos persistentes, desses que sobrevivem ao tempo e às versões.
No fim, fiquei com um pensamento que me parece justo com o artista e com o público: que bom que a série existe para reacender nossa saudade; que venham outras — mais corajosas — para encarar as sombras com a mesma ternura que dedicamos à luz. Até lá, eu sigo rindo com o Chapolin, chorando com o Chaves e repetindo, sem medo de parecer piegas: “calma, calma… não criemos pânico”. Porque, quando a gente lembra por que se apaixonou por essas histórias, a vida fica um pouquinho mais leve — e a televisão volta a ser o lugar onde a gente se encontra.
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